A Reforma da Administração Local
- o Documento Verde
Por José Lachado
Nos últimos meses José Gonçalves solicitou-me a contribuição para a “publicação” da minha opinião sobre um assunto da atualidade.
Resisti ao seu apelo até à altura em que o jornal comemorou o seu segundo ano de existência, tendo-lhe comunicado que iria dar a minha opinião sobre a proposta da Reforma da Administração Local, que tanto se tem falado. Mal imaginava eu que, no dia em que rabiscava esta opinião, o município do Porto e a Assembleia de Freguesia do Bonfim fossem tão falados pela imprensa, infelizmente por circunstâncias que nada têm a ver com esta matéria.
Para aqueles que não me conhecem, numa rápida e simples pincelada (se a memória não me falha), apresento-me: fui da comissão recenseadora da freguesia do Bonfim, secretário e responsável pelo pelouro da ação social da Junta de freguesia do Bonfim de 1985 a 1989, presidente da mesma entre 1989 a 1993, membro da Assembleia de Freguesia do Bonfim nos mandatos de 1981/1985, 1993/1997 e desde 2001 até à data. Tendo passado, entretanto, pela Assembleia Municipal do Porto.
Enquanto secretário e responsável pela ação social da junta, criei os Centros de Dia e de Convívio para Idosos do Bonfim e, no mandato seguinte - como presidente - o serviço de Apoio Domiciliário a idosos e carenciados do Bonfim. Valências essas que a junta, por enquanto, ainda mantém.
Ou seja, sou do tempo (não estávamos em exclusividade de funções e tínhamos poucos recursos) em que ser autarca era tido como um “serviço público” e não um “emprego” mas, que se apresentava “trabalho” em prol da comunidade (hoje faz-se copy paste). Não seria de todo correto se não dissesse que, o resultado desse trabalho se deveu a uma equipa coesa, participativa, responsável, trabalhadora, com ideias e que sabia dialogar, formada por - para além de mim - Fernando Soares (PSD), Jorge Martins (PSD), José Soares (PSD), Roberto Machado (CDU), Isabel Cabral (CDU) e Alberto Costa (CDU).
Julgo ter sido o primeiro autarca deste país que, dois dias (28 de setembro) após a divulgação pelo governo do “Documento Verde para Reforma da Administração Local”, apresentou e fez aprovar uma proposta em assembleia de freguesia, para a discussão pública da referida reforma.
Por sentir a freguesia do Bonfim, opinar, estar atento e não ser um “cego” seguidista, sou intitulado por alguns (aqueles que dizem que bons eram os tempos em que o regedor reunia aos domingos à porta da igreja com os senhores da freguesia) por gostar de “ligar o complicómetro”.
Passemos ao assunto que me trás aqui – o Documento Verde da Reforma da Administração Local.
A reforma da administração local terá de ser feita por força do acordo realizado entre a troika e o governo de José Sócrates (PS), com o aval do PSD e do CDS.
Acho importante relembrar quem assinou o acordo com a troika porque, me dá a entender que ultimamente, se faz passar a ideia que o PS “nasceu” em meados de 2011 e, nada teve a ver com a governação anterior.
Todos sabemos que, quando se pretende reformar, há sempre quem se oponha e, que houve reformas em Portugal de tal forma impensadas que, levaram o país ao ponto em que se encontra. Eu não sou contra as reformas, só que, julgo que este modelo será mais um que nada de bom trará para a população e, será mais oneroso para o estado.
Conforme é referido no “Documento Verde” esta é uma reforma para a administração local ou seja, extensiva aos municípios e às freguesias.
Mas, só se fala em cortes de 50 por cento das freguesias isto é, esta reforma não é universal como está mencionada.
O custo que o Estado tem com as freguesias representa cerca de 0,1089 por cento das despesas do OGE, ou seja, insignificante comparado com o que se gasta com o SEE (Setor Empresarial do Estado), ou com o SEL (Setor Empresarial Local) e ou com as PPP (Parcerias Público Privadas).
Com esta reforma, o governo vai gastar mais com as novas freguesias já que, haverá um maior número de autarcas a tempo inteiro (por terem mais de 20000 eleitores) e, consequentemente, de eleitos quer para as juntas e quer para as assembleias de freguesia.
Supostamente, irá haver juntas com maior número de eleitores que muitos dos municípios existentes.
Portanto, se há algum cariz economicista nesta proposta, alguém se deve ter enganado nas contas porque não é com este modelo de extinção de freguesias que o vão conseguir.
O governo pouparia mais se condicionasse o número de adjuntos e assessores dos executivos municipais, de empresas municipais e com a suspensão do “tempo inteiro” aos autarcas das juntas até à melhoria da situação económica do país.
Hoje em dia e cada vez mais, a atividade das juntas são essencialmente de índole social. Com a extinção e agrupagem de freguesias irá haver um fosso maior entre a população e o poder local, contribuindo para o desinteresse (perigoso) da população em futuras eleições. Vão-se perder as fronteiras, a identidade e a cultura das freguesias atualmente existentes.
Dizem que trará novas competências e mais 15 pontos percentuais de verbas para as freguesias agrupadas. Mas, o certo é que não está mencionado no documento quais serão de facto essas novas competências e, quanto aos 15 por cento de verba adicional, tal não corresponde à verdade já que, a atual lei das finanças locais prevê um aumento de 10 por cento para as freguesias que se agrupassem e, não me parece que tivesse tido grande sucesso.
De realçar que a freguesia do Bonfim (Porto) cumpre os requisitos previstos pelo que, não é suposto a sua extinção ou agrupagem. Julgo que o contrário seria um erro e uma traição aos bonfinenses.
Para além de todas estas dúvidas e incongruências, o Documento Verde não esclarece sobre o que vai suceder aos funcionários das juntas, aos bens patrimoniais, à responsabilização da gestão dos ativos e passivos e, não garante ganhos de eficiência e de eficácia ao poder local.
Estou certo é que, o já imenso “exército” de desempregados existente no país, irá engrossar com os funcionários das juntas extintas e agrupadas. Mais um elevado custo para o Estado.
A confusão quanto a este documento é de tal forma que, o governo já adiou por duas vezes, a sua apresentação e votação em conselho de ministros e, já não se sabe de cor é. Como foi dito pelo edil do Porto, este é um documento “atabalhoado”.
O congresso da Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE) de dezembro passado foi bem demonstrativo do desagrado dos eleitos locais quanto a esta proposta. Eu fui um dos que, em consciência, votei contra este modelo de reforma.
A Assembleia de Freguesia do Bonfim em função da proposta que apresentei, organizou duas sessões públicas (6 e 14 de Janeiro) subordinadas ao tema “A Reforma da Administração Local – fundamentos e consequências”.
Foram convidados como oradores os partidos políticos com assento na AR, a ANAFRE e o sindicato dos trabalhadores da função pública da zona norte. A população presente, foi bem esclarecedora quanto à sua opinião em relação a esta reforma. Julgo que, os membros da assembleia de freguesia interessados e que estiveram presente nestas sessões, ficaram mais esclarecidos quanto a esta reforma e saberão já o seu sentido de voto. Outra situação que, igualmente, ficou esclarecida foi que, o exemplo de Lisboa com a extinção e agrupagem de freguesias, tantas vezes mencionado, não deve ser seguido.
O
que de bom trouxe este documento, foi que surgiu uma nova atividade profissional, a de “desenhador de freguesias” que, espero, não tenha grande futuro.
Caberá aos eleitos nas assembleias de freguesia e municipal a palavra final.
Estou confiante que não haverá nenhum presidente de junta ou eleito local que, em consciência, vote a favor desta reforma já que, o povo não lhe deu mandato para extinguir ou agrupar a freguesia de cujo órgão autárquico representa.
Nota: Apenas por curiosidade. A Assembleia Municipal de Tomar é presidida pelo ministro Miguel Relvas e aprovou uma moção contra este modelo de reforma.
A identidade Cultural Açoriana
Embora o adjectivo açoriano pouco ou nada qualifique em relação à realidade cultural do Arquipélago constituído por nove Ilhas diversificadas entre si pelo modo de estar no mundo e de o conceber, iremos, por uma questão operatória e de comodidade metodológica, deixá-lo, no contexto deste artigo, atido apenas à sua significação estritamente gramatical.
É a partir das primeiras décadas do século XV que a Coroa portuguesa empreende a descoberta, alguns até sustentam que foi redescoberta, das Ilhas Atlânticas, que vieram a constituir o Arquipélago dos Açores.
As próprias aves que lhe deram o nome nem sequer são oriundas destas paragens, pelo que houve, à partida, um erro científico de quem confundiu milhafres com açores.
As razões que levaram ao empreendimento marítimo são historicamente conhecidas e claras: satisfazer com novas terras o apetite de uma nobreza de segunda linha, ávida de poder e glória, e garantir às Praças do Norte de África o seu sustento, pelo que foi o trigo o cereal mais extensa e intensivamente cultivado nos primeiros tempos do povoamento.
Na proporção do respectivo descobrimento, as Ilhas iam sendo encontradas vazias. Tirando as aves marinhas, que as sobrevoavam e decerto lá nidificavam, os outros animais, incluindo o homem, tiveram de ser transferidos do reino português.
Acompanhando essa nobreza de segunda linha, vieram homens, sem os quais não só não haveria povoamento como também, e sobretudo, não seria a terra desbravada e cultivada para benefício e maior riqueza de seus donos e senhores.
Toda essa gente provinha de diversas províncias portuguesas do Continente e trazia consigo a recordação de hábitos e costumes que em suas terras de origem se praticavam, os quais tentou reproduzir na nova pátria adoptiva.
É, pois, natural que essa cultura transportada na memória, sobretudo afectiva, se moldasse e adaptasse às novas condições geográficas, climatéricas e sociais das Ilhas, na altura em acentuado processo de povoamento, ganhando uma especificidade a que mais tarde Vitorino Nemésio haveria de chamar açorianidade, tal como Unamuno o fizera em relação à sua Espanha, ao inventar hispanidad.
Porém, a matriz dessa cultura trazida ficou na terra de origem, onde evoluiu independentemente da que tinha sido transportada nos porões das caravelas, que, na maior parte dos casos, nem forças teve para cortar o cordão umbilical que a ligava ao útero materno.
O próprio Culto ao Divino Espírito Santo, que, nas Ilhas dos Açores, obteve ressonâncias muito intensas e particulares, diferentes no entanto de Ilha para Ilha — foi trazido do Continente português, onde, até ao século XVII, esteve em pleno vigor, havendo dele alguns resquícios em certas localidades.
A feição específica que viria a tomar no Arquipélago deve-se a fenómenos de natureza telúrica, tipicamente ilhéus, como seja a sismicidade e tantas outras calamidades vulcânicas, que fizeram com que as populações atingidas se agarrassem ao bordão do Divino Espírito como refúgio e refrigério de suas angústias e desgraças.
O culto trazido do reino ganhou assim uma nova e intensíssima dimensão religiosa e cultural. Existe apenas uma manifestação religioso-cultural, autóctone, não herdada, pelo menos directamente da cultura nacional: a dos romeiros da Ilha de São Miguel.
Ao invés das romarias continentais, ostenta apenas um carácter penitencial, não lúdico. Natália Correia, contudo, sustenta que a origem da romaria micaelense, com seu carácter de maceração, vai entroncar num velho costume da tradição hebraica. De qualquer modo, concedamos que esta seja uma especificidade cultural ilhoa, restringida no entanto a uma só Ilha do Arquipélago.
Com o que se acaba de afirmar, não se quer de modo algum significar que não exista uma especificidade cultural açoriana. Ela de facto existe. Na língua falada, a que foi trazida nos séculos XV e XVI e que manteve, durante longos séculos, o seu sabor castiço e uma riqueza lexical invejável (não confundir com a pronúncia, por vezes, áspera e comedora de sílabas finais e de ditongos. .
O Doutor Paiva Boléo, linguista da Universidade de Coimbra, escreveu, numa das suas obras, que quem porventura quisesse ouvir falar o português dos séculos XV e XVI se tirasse de cuidados e fosse à Ilha de São Miguel!
É evidente que o livro foi publicado muito antes da praga televisiva ter invadido as Ilhas e anavalhado a grande arte que quase todo o ilhéu que se prezava praticava: a conversa por amor da conversa...
Nas diversas áreas e modos por que a cultura se vai manifestando, da música à literatura, passando pelo folclore e pelas danças, se pressente a sua marca de origem.
Seria estulto não reconhecer esse selo distintivo, como estulto seria afirmar e sustentar que tal característica seria suficiente para autonomizar a cultura açoriana do todo matricial a que pertence por direito de nascença. Essa especificidade caracteriza-se tendo em conta as particulares condições ambientais para onde a cultura original foi transplantada.
Nesta ordem de ideias, e dando alguns exemplos, dir-se-ia que Almas Cativas, do florentino Roberto de Mesquita, só poderia ter sido escrito por um ilhéu das Flores, minúscula ilha então isolada do mundo e das outras suas companheiras de destino.
O mesmo se poderia dizer em relação a Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio. Nada se retira, com isso, à universalidade de ambas as obras e de muitas outras em que o ferrete da açorianidade é por demais evidente e relevante. Já o mesmo se não poderá afirmar do nosso poeta-filósofo, Antero de Quental.
Nado e em parte criado na Ilha de São Miguel, não reflectiu de um modo tão profundo nem o peso da insularidade do florentino, nem o pitoresco da linguagem do terceirense. Exprimiu, isso, sim, a angústia universal do Homem perante a morte, perante Deus, perante o Universo, perante a vida...
Será que Antero de Quental fica, por isso, diminuído em face dos outros, ou os outros perante ele?
É evidente que não.
A altura ou a profundidade da arte inerente aos três poetas, e embora haja a tentação de graduar a própria grandeza, advém-lhes, não do invólucro com que cobriram as respectivas criações poéticas, mas, antes, do modo genial com que deram voz e revestiram de arte aos seus mais íntimos desejos, aspirações, angústias, sentimentos...
A especificidade que existe na cultura açoriana e nos artistas que nas Ilhas edificaram a sua sensibilidade vem de facto enriquecer a cultura portuguesa no seu sentido lato, cunhando-a, na sua diversidade, com uma mais funda unidade.
Miguel Torga escreveu que o universal é o local sem paredes. Ora, este pensamento, feliz e profundo, vem ilustrar, de forma luminosa e sintética, tudo quanto atrás se procurou escrever acerca da identidade cultural açoriana.
(*)Nascido no Pico da Pedra, ilha de S. Miguel, Açores, Cristóvão de Aguiar é considerado um dos grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea.
De entre a sua vasta obra, destacam-se Raiz Comovida, Relação de Bordo, Nova Relação de Bordo,Marilha, Passageiro em Trânsito, A Tabuada do Tempo,Trasfega, Ciclone de Setembro, Catarse, etc.
No dizer de Joaquim Jorge Carvalho, é "um exímio cultor da palavra literária".
Recebeu o Grande Prémio da Literatura Biográfica da APE, pela "Relação de Bordo" e por duas vezes o Prémio Nacional Miguel Torga, em 2003, pelo livro "Trasfega" e em 2006, pela "Tabuada do Tempo". Recebeu a Ordem do Infante D. Henrique. Vive entre Coimbra e a ilha do Pico.
Bibliografia
Aguiar, Cristóvão: Emigração e outros temas ilhéus, Edições Signo, Ponta Delgada, 1991; Relação de Bordo, Campo das Letras, Porto, 1999.
Almeida, Onésimo Teotónio: Açores, Açorianos, Açorianidade, Edições Signo, Ponta Delgada, 1989.
Nemésio, Vitorino: Corsário das Ilhas, Bertrand, Lisboa, 1983; Sob os Signos de Agora, Imprensa Nacional, Lisboa s/d.
Silveira, Pedro da: Antologia de Poesia Açoriana, Sá da Costa, Lisboa, 1977.
OBS:Este texto foi escrito de acordo com a ortografia antiga.